sexta-feira, 26 de abril de 2024

Hipocrisia

O rosto dela estampa meus pensamentos durante todo o meu dia, independentemente do momento: durante o trabalho, no ônibus a caminho do serviço e, também, quando estou voltando para casa, enquanto tomo banho, nos momentos de excitação, entre um gozo e um suspiro, quando me deito e me permito sonhar, a cada 36 minutos quando o odorizador de ambiente esguicha seu perfume pela casa, ao picar legumes e descascar batatas, enquanto cozinho e em tantos outros momentos, aleatórios ou não, que eu jamais imaginaria que ela poderia surgir em minha mente. E, como se não bastasse invadir meus momentos de contemplação mental com seu rosto e cada detalhe dele, eventualmente sua voz, seu cheiro, seus cabelos, seu corpo, seu gosto também me assolam. Isso quando não fantasio a vastidão de momentos que poderíamos compartilhar dada todas as coisas que descobrimos ter em comum.

A constatação desse fato me atingiu como um tiro e me senti tal como o Doutor Estranho no início do seu treinamento, como se esse baque fosse capaz de separar minha alma do meu corpo. Em um lapso de consciência, um questionamento me veio a mente em forma de autojulgamento: "porque é tão incômodo aquela mulher ocupar os pensamentos dele, se eu mesma não a tiro da cabeça?". Chegava a ser hilário tamanha hipocrisia, mas o que eu poderia fazer?

Talvez meu incômodo surgisse, justamente, das emoções que habitavam dentro de mim. Afinal, sabendo tudo que ela provocara em mim com tão pouco, como poderia não causar estragos maiores naqueles que convivessem e fossem mais próximos dela ou tivessem todo o plano de fundo que havia entre eles. Como ele poderia não se apaixonar e não se envolver, se, eu mesma, já me sentia, em certo nível, apaixonada e envolvida. Para mim, isso parecia não só inconcebível, como impossível.

Mesmo envolta pelo emaranhado de sentimentos que desenvolvi por ela, eu não conseguia compreender de onde eles vinham. O que havia de tão inebriante naquele ser de um metro e meio de altura que fazia eu sentir-me dessa forma? Não entendia como alguém com uma estatura tão baixa era capaz de desencadear tantas sensações em outras pessoas. Seria o cabelo indomável? Seria o sorriso torto? Seria o aconchego que oferecia com seu abraço apertado? Seriam seus interesses? Seria sua capacidade nata de falar sobre si mesma e sobre tantos outros assuntos? Seria o fato de, assim como eu, também ser da área de comunicação? Seriam as perguntas inesperadas que ela fazia? Seria sua trajetória e sua história de vida? Ou seria a forma como ela reunia tantos aspectos que me atraiam tão facilmente? Quem sabe, seria a forma como ela parecia ter sido feita sob encomenda, com a forma e o encaixe perfeito para aquilo que, sem saber ou sem admitir, eu tanto desejava e vinha buscando?

Por mais que eu dedicasse incontáveis segundos, minutos e horas do meu dia em busca de uma resposta, eu não chegava a conclusão alguma. Não sabia o que ela tinha. Em meio as tentativas vãs de encontrar sentido naquilo, até cheguei a me perguntar se o problema era com ela ou comigo. Talvez eu tivesse uma tendência a me apaixonar por mulheres cacheadas que fossem inteligentes e gostassem de ler. Talvez eu, simplesmente, tivesse um fraco por mulheres e, bem, ela era uma mulher... E, que mulher!!!

Entretanto, independentemente de quem seja a "culpa", são inúmeras as hipóteses que podem justificar a sequência de acontecimentos que se desenrolaram, tanto dentro quanto fora de mim, desde o momento que meus olhos recaíram naquela mulher a minha espera na plataforma do metrô. E, em meio a tudo isso, saber quem de nós duas é a culpada pode ser o ponto menos relevante. A questão é que ela não saí da minha cabeça e eu sou incapaz de lidar com tanto dela dentro de mim.


Gabrielle Colturato


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